Eu, mulher negra, RESISTO!
domingo, 11 de agosto de 2013
Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo GLORIA ANZALDÚA
24 de maio de 1980
Está escuro e úmido e chove o dia
todo. Eu amo dias como este. Enquanto
estou deitada na cama sou capaz de
aprofundar-me no meu íntimo. Talvez hoje
escreverei deste âmago profundo.
Enquanto tateio as palavras e uma voz
para falar do escrever, olho para minha
mão escura, segurando a caneta, e penso
em você a milhas de distância segurando
sua caneta. Você não está sozinha.
Caneta, sinto-me como em casa em
sua tinta, dando uma pirueta, misturando
as teias, deixando minha assinatura nos
vidros da janela. Caneta, como pude
alguma vez ter medo de você? Você não
tem casa, mas é sua impetuosidade que
me deixa apaixonada. Tenho que me livrar
de você quando começar a ser previsível,
quando parar de perseguir diabinhos.
Quanto mais você me supera, mais eu a
amo. É quando estou cansada, ou quando
tomei muita cafeína ou vinho que você
ultrapassa minhas defesas e digo mais do
que pretendia. Você me surpreende, me
choca quando revela alguma parte de
mim que mantive em segredo de mim
mesma.
Registro de diário.
As vozes de Maria e Cherríe chegam
da cozinha e caem nestas páginas. Eu
posso ver a Cherríe andando em seu
quimono, lavando os pratos de pés
descalços, batendo a toalha de mesa,
passando o aspirador. Enquanto sinto um
certo prazer em observá-la fazendo estas
simples tarefas, fico pensando, eles
mentiram, não existe separação entre vida
e escrita.
O perigo ao escrever é não fundir
nossa experiência pessoal e visão do
mundo com a realidade, com nossa vida
interior, nossa história, nossa economia e
nossa visão. O que nos valida como seres
humanos, nos valida como escritoras. O
que importa são as relações significativas,
seja com nós mesmas ou com os outros.
Devemos usar o que achamos importante
para chegarmos à escrita.
Nenhum
assunto é muito trivial. O perigo é ser muito
universal e humanitária e invocar o eterno
ao custo de sacrificar o particular, o
feminino e o momento histórico específico.
O problema é focalizar, é se
concentrar. O corpo se distrai, faz
sabotagem com centenas de
subterfúgios, uma xícara de café, lápis para
apontar. O recurso é ancorar o corpo em
um cigarro ou algum outro ritual. E quem
tem tempo ou energia para escrever,
depois de cuidar do marido ou amante,
crianças, e muitas vezes do trabalho fora
de casa? Os problemas parecem
insuperáveis, e são, mas deixam de ser
quando decidimos que, mesmo casadas
ou com filhos ou trabalhando fora, iremos
achar um tempo para escrever.
Esqueça o quarto só para si —
escreva na cozinha, tranque-se no
banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da
previdência social, no trabalho ou durante
as refeições, entre o dormir e o acordar. Eu
escrevo sentada no vaso. Não se demore
na máquina de escrever, exceto se você
for saudável ou tiver um patrocinador —
você pode mesmo nem possuir uma
máquina de escrever. Enquanto lava o
chão, ou as roupas, escute as palavras
ecoando em seu corpo. Quando estiver
deprimida, brava, machucada, quando
for possuída por compaixão e amor.
Quando não tiver outra saída senão
escrever.
Distrações todas — alguma coisa me
acontece quando estou concentrada no
escrever, quando estou quase chegando
lá — aquele sótão escuro onde alguma
“coisa” está propensa a pular e precipita rse
sobre mim. As formas com que subverto
o escrever são muitas. A maneira como não
tiro água da fonte e nem aprendo a fazer
o moinho de vento girar.
Comer é minha principal distração.
Levantar para comer uma torta de maçã.
Mesmo o fato de não comer açúcar por
três anos não me dissuade, mesmo que
tenha que vestir o casaco, encontrar as
chaves, e sair na neblina de São Francisco
para comprá-la. Levantar para acender
um incenso, colocar um disco, dar uma
caminhada — qualquer coisa para adiar
o escrever.
Voltar depois de empanturrar-me.
Escrever parágrafos em pedaços de
papel, formando um quebra cabeças no
chão, a confusão de minha escrivaninha,
protelando a conclusão e tornando a
perfeição impossível.
Completo aqui.
LITTLEBEAR, 1977, p. 36.
ESTUDOS FEMINISTAS 2 3 3 1/2000
...Estas Cartas são parte das coisas mais lindas que eu já pude ler. Toda vez eu eu as leio, eu choro porque são muito íntimas ao mesmo tempo conversa sobre todas nós. Quem gostar, aconselho a salvar no computador ou guardar no e-mail porque a internet não é confiável e estas palavras macias podem nos socorrer em outros momentos ou socorrer outras irmãs que não poder ler na internet.
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